Friday, August 10, 2007

História de uma gata

Seeeenta que lá vem a história.
(Será que mais alguém além de mim sabe em que programa se dizia isso?)

Por algum motivo, os gatos me perseguem. Hoje vi quatro ou cinco, os moradores dos jardins da FBN, preguiçosamente se banhando, assustados com o movimento, ou brincando com folhas secas. Malhados, brancos, cinzentos, panteras negras.
Ontem a Cora Rónai publicou uma crônica sobre um gato. E hoje me contam que Artur da Távola falou a respeito no rádio.
Danem-se. Vou postar aqui as duas, na íntegra. Não me dou ao luxo de perder estas preciosidades nos labirintos da internet.


Irineu e os outros (Cora Rónai)

Na segunda-feira retrasada, assim que cheguei da Espanha, tive que ir ao banco tratar de um assunto tenebroso; cheguei nervosa e saí arrasada. A agência fica num edifício que dá para o estacionamento do Globo e, por acaso, havia lá um gatinho abandonado que me seguiu, me esperou pacientemente na porta e, depois, me acompanhou até a entrada do jornal.

Ali há uns bancos -- dos outros, bonzinhos, de madeira -- encostados à parede. Sentei para arrumar as idéias, gatinho ao lado. Gatos são ótimos conselheiros para toda a sorte de problemas. Percebem quando estamos aflitos e têm o poder de nos ajudar a pôr os dramas na devida perspectiva: são práticos e objetivos. Aquele filhote magro e sujo não era exceção. Ele sabia que eu precisava de apoio moral e me distraiu até que as nuvens mais negras se dissipassem

O dia seguinte era meu aniversário. O inferno zodiacal estava por pouco e, afinal, dinheiro é o de menos quando se tem saúde e felicidade. Para não falar na sorte, que inventa coincidências: como se a vida, ao me aprontar uma cilada absurda, oferecesse, com a outra mão, uma alegriazinha quadrúpede de consolo.
* * *
Na quarta, levei uma tigela e ração para o jornal. O gatinho estava magro demais, precisava comer. Minha idéia era cuidar dele lá, mantendo-o debaixo do olho, mas sem levá-lo embora. No estacionamento há um entra-e-sai muito divertido para um gato, e dócil como era, o pequeno alvinegro não teria dificuldade em fazer amigos. Cheguei e lá estava ele, dormindo encostado ao meio-fio, pronto para ser atropelado.

Acordou quando me aproximei e se atirou à ração. Estava horrivelmente fedorento: debaixo da pata dianteira direita, que nem conseguia encostar no chão, havia uma ferida purulenta. Tentei descobrir o que acontecera. Ninguém fazia idéia. Tudo o que consegui saber é que o gatinho fora abandonado há cerca de uma semana, e que vinha emagrecendo desde então. Um dos rapazes do estacionamento já até comprara ração, mas o bichinho tinha medo dos fundos, onde ficam as motos, único lugar onde as tigelinhas de água e comida ficariam a salvo do pessoal da limpeza.

Trabalhei pensando no gatinho. Levá-lo para casa seria maluquice: a Família Gato, composta de sete véinhos rabugentos, não ia aceitar um pirralho novo assim sem mais nem menos. Por outro lado, do jeito que estava, o coitado não durava uma semana... Quando saí, peguei uma caixa de papelão, catei-o no estacionamento e fomos juntos para casa. Eu trataria dele e depois encontraria um bom lar para abrigá-lo.

Antes mesmo disso, porém, ele já tinha sido batizado pelo Nelson Vasconcelos:

-- Um gato no estacionamento? Tem que se chamar Irineu...

O Globo, para quem não sabe, fica na Rua Irineu Marinho, nome do fundador do jornal. O nome pegou na hora, até porque o Irineu tem muita cara de Irineu. Tem um jeito circunspecto e engraçado, acentuado por longos bigodes brancos.
* * *
Irineu passou a primeira noite em casa de quarentena, no quarto da Bia. Não causou maior comoção, porque os gatos mal me viram chegar. No dia seguinte tomou um banho que revelou que estava ainda mais magro do que parecia. O veterinário diagnosticou uma verminose daquelas e uma cistite enjoada. O machucado da pata, tirando a gravidade da infecção e o seu aspecto horroroso, não pedia outra coisa além de antibiótico. Ao todo, se tudo corresse bem, Irineu passaria dez dias lá em casa, em tratamento, antes de seguir seu destino.

A quarentena foi mantida durante os próximos dias. Sempre que se traz um bicho novo para casa é bom deixá-lo separado dos outros por um tempo, para evitar eventuais contaminações e, também, para que os donos da casa se acostumem com o cheiro do recém-chegado, e com a idéia de que há mais um quadrúpede na área.

Aos poucos, fui liberando o Irineu: primeiro um tiquinho à toa, depois por períodos maiores. No começo muito fraquinho, ele basicamente me seguia até a sala, espichava-se no tapete e lá ficava. A Famiglia Gatto, extremamente cabreira, observava de longe. Os mais valentes se aventuravam: chegavam perto, cheiravam o forasteiro, cheiravam, cheiravam... e FSSSSSSSS!, saíam correndo.

Venho usando todos os meus truques de psicologia felina para que não se sintam mal. Faço de conta que não estou nem aí para o pequeno e me desmancho em carinhos com eles. Dou petiscos. Faço bolinhas de papel que atiro em todas as direções. Pois sim! Os véinhos me olham altaneiros e viram as costas, para que fique bem claro que estão me ignorando.

Enquanto isso, Irineu progride a olhos vistos. É um dos gatos de melhor índole que já conheci; não só aceita tomar remédio como,depois,se aninha no colo pedindo carinho. Está mais gordinho, a ferida da pata secou e, ante-ontem, saiu correndo pela casa, brincando com uma bolinha. Já anda interessadíssimo nos outros gatos.Acho que sua mãe deve ser uma tricolor, pois segue a Keaton para todo lado, chorando baixinho. Identifica-se com a Netcat, quase igual a ele, e tenta brincar com a Pipoca siamesa, que é pequenina e tem o seu tamanho.

Ainda não conseguiu conquistar ninguém -- a não ser o bípede de coração mole que escreve essas mal tecladas, e que desconfia que o Irineu nunca mais vai embora.

(O Globo, Segundo Caderno, 9.8.2007)

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Simplesmente Gatos (Artur da Távola)

Bichos polêmicos sem o querer, porque sábios, mas inquietantes, talvez por isso...nada é mais incômodo que o silencioso bastar-se dos gatos. O só pedir a quem amam. O só amar a quem os merece.

O homem quer o bicho espojado, submisso, cheio de súplica, temor, reverência, obediência. O gato não satisfaz as necessidades doentias do amor. Só as saudáveis.

Lembrei, então, de dizer, dos gatos, o que a observação de alguns anos me deu.

Quem sabe, talvez, ocorra o milagre de iluminar um coração a eles fechado?

Quem sabe, entendendo-os melhor, estabelece-se um grau de compreensão, uma possibilidade de luz e vida onde há ódio e temor? Quem sabe São Francisco de Assis não está por trás do Mago Merlin, soprando-me o artigo?

Já viu gato amestrado, de chapeuzinho ridículo, obedecendo às ordens de um pilantra que vive às custas dele? Não! Até o bondoso elefante veste saiote e dança a valsa no circo. O leal cachorro no fundo compreende as agruras do dono e faz a gentileza de ganhar a vida por ele. O leão e o tigre se amesquinham na jaula.

Gato não. Ele só aceita uma relação de independência e afeto. E como não cede ao homem, mesmo quando dele dependente, é chamado de arrogante, egoísta, safado, espertalhão ou falso.

"Falso", porque não aceita a nossa falsidade com ele e só admite afeto com troca e respeito pela individualidade. O gato não gosta de alguém porque precisa gostar para se sentir melhor. Ele gosta pelo amor que lhe é próprio, que é dele e ele o dá se quiser.

O gato devolve ao homem a exata medida da relação que dele parte. Sábio e espelho. O gato é zen. O gato é Tao. Ele conhece o segredo da não-ação que não é inação. Nada pede a quem não o quer.

Exigente com quem ama, mas só depois de muito certificar-se. Não pede amor, mas se lhe dá, então ele exige.

Sim, o gato não pede amor. Nem depende dele. Mas, quando o sente é capaz de amar muito. Discretamente, porém sem derramar-se. O gato é um italiano educado na Inglaterra. Sente como um italiano mas se comporta como um lorde inglês.

Quem não se relaciona bem com o próprio inconsciente não transa o gato. Ele aparece, então, como ameaça, porque representa essa relação precária do homem com o (próprio) mistério. O gato não se relaciona com a aparência do homem. Ele vê além, por dentro e pelo avesso. Relaciona-se com a essência.

Se o gesto de carinho é medroso ou substitui inaceitáveis (mas existentes) impulsos secretos de agressão, o gato sabe. E se defende do afago. A relação dele é com o que está oculto, guardado e nem nós queremos, sabemos ou podemos ver. Por isso, quando surge nele um ato de entrega, de subida no colo ou manifestação de afeto, é algo muito verdadeiro, que não pode ser desdenhado. É um gesto de confiança que honra quem o recebe, pois significa um julgamento.

O homem não sabe ver o gato, mas o gato sabe ver o homem. Se há desarmonia real ou latente, o gato sente. Se há solidão, ele sabe e atenua como pode (ele que enfrenta a própria solidão de maneira muito mais valente que nós). Se há pessoas agressivas em torno ou carregadas de maus fluidos, ele se afasta.

Nada diz, não reclama. Afasta-se. Quem não o sabe "ler" pensa que "ele não está ali. Presente ou ausente, ele ensina e manifesta algo. Perto ou longe, olhando ou fingindo não ver, ele está comunicando códigos que nem sempre (ou quase nunca) sabemos traduzir.

O gato vê mais e vê dentro e além de nós. Relaciona-se com fluidos, auras, fantasmas amigos e opressores. O gato é médium, bruxo, alquimista e parapsicólogo. É uma chance de meditação permanente a nosso lado, a ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério. O gato é um monge portátil à disposição de quem o saiba perceber.

Monge, sim, refinado, silencioso, meditativo e sábio monge, a nos devolver as perguntas medrosas esperando que encontremos o caminho na sua busca, em vez de o querer preparado, já conhecido e trilhado. O gato sempre responde com uma nova questão, remetendo-nos à pesquisa permanente do real, à busca incessante, à certeza de que cada segundo contém a possibilidade de criatividade e de novas inter-relações, infinitas, entre as coisas.

O gato é uma lição diária de afeto verdadeiro e fiel. Suas manifestações são íntimas e profundas. Exigem recolhimento, entrega, atenção. Desatentos não agradam os gatos. Bulhosos os irritam. Tudo o que precise de promoção ou explicação, quer afirmação. Vive do verdadeiro e não se ilude com aparências. Ninguém em toda natureza aprendeu a bastar-se (até na higiene) a si mesmo como o gato!

Lição de sono e de musculação, o gato nos ensina todas as posições de respiração ioga. Ensina a dormir com entrega total e diluição recuperante no Cosmos. Ensina a espreguiçar-se com a massagem mais completa em todos em todos os músculos, preparando-os para a ação imediata. Se os preparadores físicos aprendessem o aquecimento do gato, os jogadores reservas não levariam tanto tempo ( quase 15 minutos) se aquecendo para entrar em campo.

O gato sai do sono para o máximo de ação, tensão e elasticidade num segundo. Conhece o desempenho preciso e milimétrico de cada parte do seu corpo, a qual ama e preserva como a um templo.

Lição de saúde sexual e sensualidade. Lição de envolvimento amoroso com dedicação integral de vários dias. Lição de organização familiar e de definição de espaço próprio e território pessoal. Lição de anatomia, equilíbrio, desempenho muscular. Lição de salto. Lição de silêncio.Lição de descanso. Lição de introversão. Lição de contato com o mistério, com o escuro, com a sombra. Lição de religiosidade sem ícones.

Lição de alimentação e requinte. Lição de bom gosto e senso de oportunidade. Lição de vida, enfim, a mais completa, diária, silenciosa, educada, sem cobranças, sem veemências, sem exigências.

O gato é uma chance de interiorização e sabedoria posta pelo mistério à disposição do homem.

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